É um grito. Um grito que guardo na garganta, apertado, que me desce até ao peito, e não sei que fazer dele. Não sei como o deitar fora, se ainda não o gastei, e para dentro não vai ele. Um grito com quantas palavras tem a dor em que me deito, confortável com esta lancinante constância. Não vou esperar, que isso mais me cansa e mais me dói, e não quero disso. Fico neste vazio insolvente, que fico melhor. O resto… Se há um resto, que fique lá fora, batendo à porta fechada com punhos que não oiço. Vou fechar todas as portas, que portas abertas são chamadas ao sofrimento. O silêncio dorido da minha mente que me embale até ao sono que espero, e talvez o grito se vá em sonhos.

A luz da tarde não te aquece porque não é tua. Não te toca, não te vê, e o quarto onde estás ainda é feito de escuridão e tristeza. As vidas lá fora não são tuas nem te roçam, ao de leve, se não com sons que não escutas. Teu é este abismo onde o tempo não corre e onde te queres deitar. Tua é esta divisão que não sonha nem vive porque não deixas, não queres, é um esconderijo à vista de todos. E, infelizmente para ti, tua és tu, que te arranhas e puxas na esperança de ficares aqui e de te perdoares. Os teus dedos já não tecem palavras que cheguem, já não espelham o que sentes nesse pedaço obscuro de ser que és. Não há perdão para ti, nem coberto com risos e canções e todos os finais de tarde que te esperarem. Já não sei onde foste, alegria. É em vão que te procuro e te estendo a mão, mas o céu azul só cospe indiferença e as janelas alheias inspiram solidão. Onde estás, alegria? Já te encontrei tantas vezes, mas foges e levas os meus sorrisos. Não vás novamente, preciso de ti. Preciso da força para me suster e dos suaves trejeitos com que tornas tudo mais fácil, nem que por uma instância leve que só me roça; mas está lá. Preciso de ti para me segurar à beira do abismo e lutar contra mim mesma, porque quero ficar cá em cima, mas se é mais calmo e silencioso lá em baixo… Não posso prender mais a mão que me segura, quando peso mais e mais até a única saída ser para baixo, para o fundo, para o nada.

Os actos matam as palavras doces, tão doces, e afinal és uma cobarde, não consegues, não és capaz, falta-te a força e ficam-te as lágrimas que caem sempre e sempre, porque não tens mais em ti que isso, lágrimas. Chora, que isso nada te resolve. Não é o mundo que é triste ou a vida injusta, és tu que não deixas de ser a merda que és. Desculpa, pequena criança cobarde, mas é o que sentes e que te dói mais. É falhares para quem amas por medo, depois de juras e promessas e de usares “sempre”. Não são mentiras — disseste a ti mesma que não o farias novamente, que nunca mais usarias tais coisas se não fossem aquilo que sentes no fundo, no mais profundo de ti, no pedacinho que não consegues enganar. Mas, ainda assim, cortam-te o peito com soluços. Shh, talvez seja demasiado para ti, que és tão fraca e frágil e só consegues chorar. Uma e outra vez sempre e sempre eu odeio-te e odeio-te mais e não te suporto! Não devia ser assim, não podia ser assim, mas mereces a dor e o sofrimento e mais. Oh, a culpa, pequena criança, se sabes o que ela é a rasgar-te o coração. Se sabes o quanto ela te mata a cada bocadinho, a voz que te soa em pesadelos que te tira o fôlego. Não vale a pena acordar, se é para cumprir um destino que sonhaste e que te trai a ti mesma com o que fazes. Não te faças mártir, não vale a pena, ninguém te acredita, nem tu, porque as vítimas não se sabotam a si mesmas. Vai, dorme. Dorme como fazes para te esconderes, não de ninguém; de ti. Dorme e não acordes, porque quando acordares vais cá estar e vais lembrar-te. Dorme e foge à tua existência, criatura de solidão, porque não há quem tenha o dever de te conhecer senão tu, e a ti cansa e magoa e mata. Morte por morte antes a do sono.

há uma tragicidade cómica na música que repete e instrumentaliza a tua inconstância. há uma serenidade dorida nas palavras que te cantam e que atestam à tua loucura. há uma certeza esmorecida e firme que te toca por ser de uma irrealidade tão improvável, mas é a verdade leve que te aconchega. já sabes tudo e, contudo, nunca chega para apaziguar a tua inglória vontade de seres tu. a proximidade dói-te, a distância rasga-te, não há uma virtude no meio para consolo de martírios. sorri, alegria do hoje e sempre, deixa-te levar enquanto não estás só, não, isso não, a solidão fica por entre os peluches e as descargas de consciência. fica para ti quando choras (pouco, que de nada serve, não é?), para os momentos de quebra. fica para todas as horas que não conheces e que se cercam de quem não existe e nunca está mesmo lá. fica para os outros mas não, não é a mesma. diz-me, há mais razão que a que tens, ou a tua é a única verdadeira? que seja, é a única que interessa, nesse sustido egocentrismo de que te orgulhas e que te sofre. não sei se sim ou não, mas vale a pena sentir mais que nada se se sente também alegria em ser. mais que nada é alguma coisa, é ser, é ter é viver é sorrir e chorar e sentir. é tanto. a indiferença mata-te mas mata-la primeiro, bane-a e contenta-te com a melodia do final de tarde, que sempre chega e te deixa ser quase tu.

canção xii – do regresso (?)

Fundo mais fundo e não consegues olhar sequer para cima. Onde estão as luzes? E cais. Cais sem querer e voluntariamente, cais e escorregas e arrastas as chagas pelas bordas do abismo, dói dói dói. Tens tanto medo. Cais mais e mais e perguntas-te se alguém vê. Ou se importa, sequer. Se não escreveres com as lágrimas que gastas, não vale a pena. Cais e não sabes se não é mais que uma ilusão, se só não vês a saída porque não queres. Talvez a teimosia esteja entranhada no teu subconsciente como em ti. Talvez te falte um final abrupto para acordares de um pesadelo que criaste. Cais, e que queda, chamas pelo fundo, anda, depressa, não quero cair mais, mas é uma espiral entontecedora e o fundo não chega. Fica o medo dentro de ti, esse terror que te avassala de quando em quando, que nem contigo sabes viver. Vá! Chega! Guarda tudo e pronto, acabou, a queda continua, a descida não acaba, mas o dia de amanhã pode trazer o fim e nem sabes por que razão te sentes assim. Shhh, já chega, deita cá para fora depressa, rápido, sê célere, está na hora de seres alegre por mais um pouco.

Está quase na hora de deitar e aí não cais, não desces, não nada, sonhas, e que sonhos. Enquanto dormes não vives, não cais.

grito x – da queda do ser.

Às vezes acho que a palavra “solidão” nasceu contigo.

Se não soubesse, dir-vos-ia irmãs. Durante anos nunca soubeste o seu nome, mas sentia-la no sal das tuas lágrimas e nos soluços que se contorciam no teu peito. Sentia-la nos peluches que apertavas sempre que lamentavas sem razão a tua sorte, ou nas horas em que te sentavas sozinha no quarto. Sabia-la nos livros que nunca te deixavam, na ponta das canetas e na sua tinta, mais ainda nas histórias em que te fazias protagonista. Sabia-la nas caminhadas, no percurso sabido que te levava a casa. Sabia-la nos abraços que te mitigavam a agitação da alma e te reduziam ao choro, sentia-la nas conversas que não conduziam a lugar algum. Percebia-la em todas as despedidas que sempre odiaste, na varanda que te afastava do quarto, na música de listas tristes ou alegres. Nas notas que cantas a caminho da rotina e do diferente, se não faz ele parte de um quotidiano vivido. Sabia-la nas mensagens que não vinham e nas que foram, nos chinelos gastos quando chegas a casa e na monotonia silenciosa do amanhecer. Percebia-la nas birras que fazias e nas que fazes, no teu egoísmo e no altruísmo. Sentia-la nas mentiras que, afinal, até sabes dizer, ou nas verdades que te esforças por contar. E sabia-la nas pessoas, porque é aí que ela cresce, com raízes fundas e espinhosas.

E começas a questionar-te; até que ponto te magoa, esticando a tua força? Cresces com ela, criança, se nunca soubeste crescer? Arrepanhada pelos cabelos, dolorosamente, até ganhares mais centímetros até à maturidade. Não compreendes os sentimentos e não sabes se os queres, ou se a quiçá familiar indolência vaga não é preferível, suave, mortífera e misericordiosa. E quando te chamarem não estarás aí, como talvez nunca tenhas estado.

canção xii – do ser e da sua possível irmã.

Chove na janela e as gotas são traços translúcidos dentro e fora de ti. Sabes chorar em silêncio, e que bem que te sabe, viver das lágrimas num segredo corrente e salgado, quente com o sabor da tua dor. Sabes chorar enquanto fustiga a chuva o mundo, enquanto não há mais torrentes e as palavras se mesclam em paradoxos em que deixaste de acreditar no momento em que fechaste os olhos, e agora só ouves a solidão. Tudo se resume ao mesmo, a essa tristeza lancinante e maculada em que não deixa de haver a misericórdia maldita da esperança. Há tão pouco neste momento a sorrir-te, chora, pequena criança alegre, que não sabes como o fazer também.

Cala a música. Se não houver mais nada, os carros lá fora a sulcar a estrada molhada ancoram-te aqui, ao quarto tranquilo na casa silenciosa e ao tempo imóvel. Tempo que só pára quando falta te faz que siga, sem perder o rumo em direcção ao futuro e à distância. Chora, vamos, que se ninguém te compreender mais razão tens para chorar. Como se fossem precisas razões, não é? Chora porque o dia te esqueceu, e foste ignorada pelo embalo da vida; chora porque a garganta se te embarga e não te deixa chorar; chora porque te sentes a perder o que amas; chora porque não foste feita para despedidas, não para mais nenhuma, curta ou do tamanho da eternidade; chora de saudades, porque as despedidas forçadas que fizeste queimam-te a alma; chora porque neste pedaço de mundo estás só com uma gata adormecida; chora porque te falta o abraço que mais precisas neste momento; chora porque és uma criança sozinha e chorona. Chora. Chora até não quereres chorar mais, porque aí toma-te o sono. Chora até a respiração se enforcar na tua garganta com os soluços do teu mesquinho sofrimento. Vamos, chora. Até a cabeça ficar leve e os pensamentos abafados e a dor tiver escorrido até se perder nas tuas lágrimas e em todos os lenços que gastaste para enxugar a tua tristeza.

Mas não queres! Não queres que nada mude, não há tempo, não houve, se tudo mudar vais sentir-te pior, cansada, exaurida da felicidade. Não te vás, alegria. Fica mais um bocadinho, preciso de ti. Não me deixes, por favor. Tenho medo de não te encontrar se te perder outra vez. Fica, alegria.

grito ix – da angústia incansável do ser.

É um tanto inverosímil a tua atitude, tão disforme que não te percebo. Não te compreendo, como nunca compreendi, que rompantes são esses que te dão e, consoante assim és, deixas de o ser. Mais vale perderes tudo de uma vez, esquecendo as contradições que te condenam a uma inquieta sensação de involuntária extenuação da alma. O que descobres são apenas paliativos, e os dias mitigam-te os males com rarefeita satisfação. Males, que males? Aqueles de que padeces com tamanha auto-compaixão que te surges enamorada de ti, adoro-te, odeio-te, pois que queres, então, se não te decides?

Quando souberes diz-me! Não quero mais saber de teus opróbios, que te estropiam por dentro com o rancor da rejeição, mas se a culpa é tua, para que te queixas? Era para ser grito, morreu entalado entre a solidão e a companhia adormecida perto de ti. Morreu e não morreu, que o sentes de garras cravadas na garganta, corrompendo-te de mórbido tom o que julgas sentir. Se tivesses a certeza seria mais fácil, mas pensar sempre te trouxe a dor da consciência, sim, que mais vale a imersão no sonho. Dormirias para sempre que nem herói marcado pelo trágico destino de ser escrito, dormirias a sua dúvida se não a soubesses tu, mas perguntas-te se dormir é realmente mais que fechar os olhos e largar âncora dos pensamentos. Soubesses que não existiam os sonhos de inconsciente consciência, e escolherias o sono. Decidiste-te antes pelo despertar todas as manhãs, que te cansa mas que se torna menos difícil porque não estás como antes, não és como antes, e a música sempre te salva, obrigada.

Se te perderes nos caminhos que tomas e que te deixam isolada do mundo por ti mesma mas sem intenção, então lembra-te, não te é difícil, que agora é só nessas alturas que tens de aguentar e que se não estás alguma vez assim, as dores são mais difíceis de suportar. Talvez não estejas ainda em casa, mas um bocadinho de casa está agora contigo, aninhado contra ti. Que não te caiam agora os pilares que te sustêm, que não se desfaçam as tuas forças pelas fraquezas que sentes. Que, perdendo quem possas perder, porque nunca soubeste manter amigos e estás fadada a deixá-los ou a ser deixada, não te percas em ti em violento turbilhão a quem falta o céu.

canção xi – da pequena canção do ser.

És tão fraca. Destróis-te debruçada sobre ti mesma; ao menos respira, pára os soluços, retoma-os. Respira. Sabes como é, sempre o fizeste. Mesmo quando tropeças pela casa vazia sem ver, engolindo o teu próprio sal num desespero que dói, que te arranca do peito as mágoas em abruptos rompantes. Dói. Mas respira. Sê portanto pseudo-mártir quebrada, com a tua propensão para a desfelicidade em ti e nos outros, e bem, toda a gente sabe que há dias maus, para quê pensar mais nisso? Mas não há a luz ao fundo do corredor, ou os passos amarfanhados com chinelos calçados, nem um pequeno esquecimento que te alivie a solidão. Dói. Acima de tudo, queres sair daqui, queres ir para casa, não queres a opressão que resulta de ficares só. E quem te oprime, afinal, se não tu? Fraca.

Entretens-te com pálida benevolência e, assim que cai o último contacto, assim que é tarde e se mostra o escuro com as luzes moribundas cujo fim sabes breve, caem as barreiras que levantas em ti mesma e choras, choras agarrada ao que te resta no momento, a ti. Dói. Perguntas-te por que dói tanto. Tem calma. Se dói agora, mais tarde será bonança, tranquilidade serena para a alma. A solidão nunca fez mal a ninguém. É só um bocadinho, pequena chorona, já passa. Se não queres pedir ajuda a ninguém, ou sequer companhia que seja, abraça a Lizzie até adormeceres, que também ela é um embalo suave, e se até fechares os olhos de vez não te pararem as lágrimas, então solta-as, vamos, nada de medos, pode ser que as chores todas e depois não mais haja para derramar.

E mesmo na solidão encontrada em ti mesma aquando do silêncio das palavras e gestos dos outros, aguenta!, sê forte!, que nunca é mais que um tempo, e todo o tempo passa, passa o tempo pelo tempo e não volta, se voltar é pior, ou, porventura, melhor;  este já passou e, incrédula em ti pelo teu grito que nunca soa mais alto que um murmúrio à tua alma, essência, pois que seja o que queres, que qualquer um serve, podes sentar-te na noite e perceber que o silêncio é só teu, mas que a solidão é do mundo. Descrever vida nesse teu plano mudo muda a cor do teu interior, e respiras agora com mais tranquilidade, choradas já quase todas as lágrimas.

grito viii – da solidão melancólica do ser.

Foi assim, foi um repente que te beijou e nem sabes o que lhe chamar. Que importa, realmente, se há-de escorrer? Mas escrever como escreves, agora, faltou-te, confessa, que eu bem sei. Conta-me, a que te sabem as viagens, aquelas que te embalam em tantos pensamentos que nem os contas, que te faltariam os dedos e para lá disso. Serenas de corpo com solavancos na alma (seja pois ela o que for!), preencher o tempo com o tempo é tarefa árdua e talvez morosa, por sinal, sinais que às vezes são mais que os que queres ou ousas revelar. E então o melhor é o teu cantinho, que cantinho, tão teu e recheado de solidão auto-induzida. Se lhe queres tocar, é uma distância tão justa quanto outra. Que te abala tanto nos teus alicerces desequilibrados? Tortos por natureza, torta és tu, idiota sem ideias que não compreende. Como o faria? O que já foi assalta-te à mão armada de memórias e deixa-te caída e prostrada dentro de ti, vendo o mundo por olhos embaciados e soluçados.

Roleta russa que te fazes, que emoção te vai sair hoje! Está chuva então, venha daí a regularidade plena que te sorri, sorri-lhe também! Ou então, pois que existem nuvens para cobrir o céu enquanto estás a mais e não vale a pena sentir, o melhor é excluíres-te, que hoje deixa de fazer sentido viver como se sim, valesse a pena. Imbecil, que todos os dias valem a pena, que cansaço, mas não estou cansada, estou com sono, é um cansaço diferente. Desgaste das peças que te engrenam a vida, que perdes todas as horas mais do que são esses momentos que deverias aproveitar. É crueldade, não é?, não crês?, sonhar assim sem esperar acordar ou a reminiscência no sonho do sonho, porque seria mais fácil despertar. Arrepios, que os pesadelos talvez existam para te mostrar que dormires para sempre (ou para o sempre deste dia) não é opção. Se acordar te custa, não é decerto o acordar de manhã para o silêncio que é tão teu, porque tu afastas, tu e apenas tu, com as tuas músicas ouvidas e cantadas, que interessa, a escolha é tua. E os tons do mundo por essas alturas, que te despertam uma melancolia que, por vezes, chega a consolar-te e a aquecer-te o peito dorido da respiração forçada.

Encontra ânimo, vamos! Contradizes-te tanto, pareces a “Mesma” e a “Outra” numa polaridade quase fascinante, fosse ela menos traumática para ti própria. Talvez seja assim para todos, pensas, então, enquanto te escapas, momentos breves, do egocentrismo (pudesse ele faltar!), mas então decides que se fosse assim para todos seria bem estranho e para estranho já chegas tu. Ou assim queres pensar.

canção x – do regresso atrasado do ser.

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