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O mesmo que te faz sorrir é o que te desmancha, é a simultânea desventura de te veres e não te teres, de saberes que nunca há dias completos que não te construam e destruam. E que sozinha não passa o tempo, não envelheces e não tomas na boca o sabor da idade porque sem haver olhos que não os teus também não há espelhos. E para que precisarás tu desses reflexos que te são agridoces, porque são feitos da harmonia e da incongruência que encontras em ti mesma? Que perfeccionismo vago o de te veres através dos outros, ou nem é isso, é seres pelos outros aquilo que queres ser para ti, esse altruísmo que procuras em ti mesma mas que é diluído e impossível, apenas uma esperança única e derradeira que não se chega a concretizar, porque ganha sempre o lado humano do teu egoísmo.

É só o que te parece natural e real e perfeito, sem a aparência inconstante que pretendes desacreditar, crê nos outros e não em ti, em quem pensas primeiro? Talvez seja um novelo enleado aquilo que fazes, tudo ao mesmo tempo da mesma forma sem contrastes, se calhar és tu mas para ti és outra. Se és outra, contudo, por que não desculpar as tuas falhas que desculpas aos outros? A reposta é que os outros não são tu. A simplicidade de seres tu mesma é devastadora. Se não te agarrares, não consegues resistir a tamanha avalanche de sentidos. Os outros são o teu pequeno e mísero refúgio, mas é tão grande que te cobre e deixas de te sentir a ti mesma só.

E com isso sentes-te só, porque não consegues esclarecer-te e saber se o que fazes é por ti se por outrem, que confusão! Tarda aquilo que desejas, não sabes o que é, que treta de conversa a tua, cala-te, não te posso ouvir, os outros também já não devem poder, vês, lá estás tu, que disparate, deixa-te disso, vamos imaginar que não disseste nada, que és silenciosa como o silêncio com música de que gostas, talvez o silêncio da tua voz a cantar, tanto faz, não fales, não digas, se pensas guarda-o para ti, o que é teu é teu e não é dos outros. Mas será?

canção ix – do ser e do outro.

Efemérides, retratos daquele passado que não cansa, por que havia de cansar? As palavras são sempre as mesmas, mas contudo, já ficou para trás, já foi, agora é uma comichão entranhada que, ao sacudir, se desvanece, porque nunca foi realmente importante, de facto. Foi aquele passado que agora quase nem isso é, é memória e ténue impressão, resquício de vestígio de marca imbuída em recordações. Nem parecem tuas, essas vagas fotografias, talvez a tua vida tenha sido de outrém, talvez tu tenhas sido de outrem, tu que nunca soubeste bem quando ser e quando deixar de o fazer, tu que usaste tanta máscara que, entretanto, perdeste as metáforas e enrodilhaste-te nelas, sem bem o saberes. Que intrínseca maldicência de ti mesma, mas sabes melhor que isso, verdade, e portanto podes perdoar-te até restares tu como senhora e dona do mundo. Para que queres o mundo, quando não te governas a ti?

As flores da manhã enchem o ar de aroma suave que precede o estio, mas tu és da tarde, sempre da tarde, és um constante poente indignado que se espraia pela pele encarquilhada e envelhecida do tempo. E, contudo, em toda essa solidão da tarde que cai morosamente, há por vezes o sentimento amargo de não se ser nada em lado nenhum, em tempo algum. Noutras alturas, é-se tudo, e sempre e por todos. Que raridade, que pérola, sim, pérola, tesouros estimados, é isso que guardas, é a isso que chamas passado, é disso que te queres construir, mas acabas por ter de incluir o resto, o que te repugna, aquilo que queres repudiar e chamar de não-teu, de alheio, de inglório e impossível. Que contradição, queres apenas uma coisa mas acabas com as duas, as duas são uma, holístico todo e una unidade, falta-te o sentido do que pensas, porque não te encontras, vogas e quebras-te num labirinto infalível onde o minotauro és tu.

Quantos passados queres, afinal? Podes ficar com o teu, se te servir, mas será sempre o mais adulterado, subjectivo, torces sempre tudo à tua maneira e juntas-lhes os passados dos outros, só que os dos outros não são teus e portanto é falacioso o teu sentir para trás. Cheira a chuva e a sol ao mesmo tempo, o vento sopra como o rio corrente e a tua delicadeza nunca existiu, sem subtileza não chegarás à harmonia que ambicionas. Procura a felicidade por ti nos outros, vivendo como tu na amabilidade do alien, pois que é a comunhão que conduzirá à utopia de cada um; não uma ilha, antes uma rede infinita e inextrincável de relações de trocas de alegria. E esquece, se preciso, o passado, porque as saudades não são inúteis mas podem tornar torpes os sentimentos do hoje.

canção viii – do passado do ser.

Que vergonha, não susteres o sorriso como deve ser, não te deixares construir alegremente durante as horas mais árduas. Não distingues uma dor da outra, afinal cabeça e  mente e  coração e viver são sempre o mesmo, esquece que te reges pela tua felicidade e perde-te, cada vez mais, não sabes por onde vais nem como sair daqui. Esperas que seja apenas mágoa física, que passa quando acordares de manhã, mas a manhã prende-te como te perdes e sentes um aperto no peito, feito da inutilidade do que te crês e do que vês quando, na escuridão da ausência de luz, te olhas ao espelho que ficava bonito rachado, porque assim é de uma inutilidade que apenas serve para compores o cabelo. Delongas-te no leito tentando esticar as horas, mas elas arrastam-se depressa e nunca as agarras como deve ser, chega a hora e o despertador tocou e tens de te levar até onde tens de ir, sem que, agora, sem que antes te tenha ocorrido, se torna claustrofóbico e pleno da incapacidade de te preencher.

Vamos, já chega! As lamúrias não te trazem nada, mas fingir-te alegre custa, como custa a insincera compreensão ou a acusação que não mereces, desta vez, por todas, não mereces! Atinge-te mais facilmente a palavra demarcada a irritação e quê! que teoria, essa tua, a de que toda a gente, um dia, poderia querer saber o que és! Loucura a que te corre nas veias, aquelas… Não, mais não, que mácula irrisória que te desvanece, a janela é já ali mas não podes sair, não podes deixar as salas decrépitas para o sol, ou o calor temeroso que enxergas mas não distingues, porque se o distinguisses já sabias qual a forma para o combater.

É tão tarde, vai dormir, tens que fazer! Mas dormir é desistir, e se pudesses dormias hoje e sempre e deixavas-te de heresias e sacrilégios que não bastam a ninguém. Quebram-se-te as pálpebras, bruxa de auto-tormentos, um dia arranjo-te uma máquina de torturas para te entreteres. E nada de pensamentos masoquistas, não, é apenas complacência pela tua estima que te impões e que nunca sabes se é ou se deixou de ser. Já é tarde, se dormires passa-te o aperto no peito, sempre que procuras no imediato parece tudo distante e demasiado longínquo para as tuas míseras forças.

grito vi – da claustrofobia do ser.

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